Entrevistas

Cris Guerra: escritora, pensadora e verdadeira!

24/07/2020
Conteúdo produzido por Jaime Neto

Muito antes dos blogs e sites especializados em modas cumprirem seus rituais diários, a mineira, Cris Guerra já produzia conteúdo com seu registro visual no “Hoje Vou Assim” - onde desfilava combinações com roupas e adereços, abusando da criatividade e das oportunidades de brincar com as roupas. Praticamente ao mesmo tempo, ela escrevia sobre a perda de seu companheiro e pai do filho, que ela já esperava no ventre. Assim, o pequeno Francisco já nasceu sob os holofotes de uma Cris Guerra que pegou o luto e transformou em poesia, segurando a mão da vida para garantir que, no futuro, a criança tivesse registradas todas as nuances de quem foi o pai. Cris Guerra transformou em texto toda a dor de sua alma e fez do luto um livro. 
 

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(Foto: Divulgação)
O resultado de tanta dedicação, sensibilidade e inteligência foi firmar seu nome como uma das mais significativas escritoras brasileiras dos tempos atuais. Nesta entrevista, mais que especial para o ESPIE, Cris Guerra transcorreu pelo passado, analisou o presente e é claro, abordou a quarentena, enquanto realidade dura que assola todos nós. Dentro de sua sensibilidade aflorada, ela foi genuinamente sincera. E ser sincera e se posicionar politicamente, hoje em dia, são pontos mais que necessários para sobreviver sem enlouquecer. Confira a conversa completa com Cris Guerra nas próximas linhas.  



Espie: Você vem discutindo as relações sentimentais há anos, do seu luto pela perda do seu companheiro até a sua relação com seu filho, Francisco. Se parasse agora pra pensar, neste caminho alguma coisa ficou sem ser dita ou se arrependeu de ter exposto algo? 

Cris Guerra: Acho que não me lembro de ter deixado de dizer alguma coisa, ou de ter me arrependido de algo que fiz ou disse. Pelo menos não objetiva e racionalmente. Se isso aparecer em alguma sessão de terapia, talvez eu me surpreenda. Não porque sou bem resolvida em tudo, mas porque costumo caprichar na expressão das minhas dores e sentimentos. A minha escrita e outras formas de expressão sempre foram curativas e catárticas. Quanto a me expor ou expor algo sobre a minha vida, eu não aprendi a ser diferente. Essa minha transparência quase involuntária é minha grande qualidade e meu grande defeito. Eu até tento ser de outro jeito, de vez em quando, mas nunca com a convicção necessária porque eu fico me perguntando a que preço eu mudaria isso em mim. Ser "um livro aberto" tem um preço alto, mas é algo que aprecio, também, nesse mundo cheio de poses e avatares sustentados, construídos. Talvez a minha verdade seja o meu legado por aqui. 


Espie: Como Francisco lida com tudo isso? Agora que ele está grande, vocês conversam sobre tudo que você escreveu, divulgou... já que é uma parte da vida dele também ali? 

Cris Guerra: Esta resposta pra mim ainda é um enigma. A gente não deixa de falar sobre nada, mas existe uma tranquilidade, não precisamos conversar sobre as coisas de forma apressada. A simples existência do livro me dá uma tranquilidade danada, e acredito que ele compartilhe esse sentimento comigo (mas isso é apenas uma hipótese pueril). O livro sempre estará lá, para quando e como ele quiser ler. Ele olha pra mim com uma maturidade e uma tranquilidade que eu torço para que não sejam apenas fruto do meu otimismo. Mas me parece que ele lida muito bem com a minha notoriedade e essa construção (mesmo que não planejada) de uma carreira a partir das nossas vivências. Acredito que ele sinta orgulho de mim – já o flagrei falando de mim para um amigo ou postando algo no perfil dele no IG que denotava isso. Ao mesmo tempo, ele não fala sobre o pai. Parece que ouviu e ainda ouve sobre esse assunto com uma frequência que torna desnecessária a investigação. Talvez não haja muito espaço para a falta, para surgir aquilo sobre o que ele possa ter curiosidade. Na verdade eu tenho certa dificuldade para me colocar no lugar dele, até para entender qual é esse lugar, o de um menino que não tem como sentir saudade de um pai que nunca conheceu. É uma falta que me parece um enigma ainda, não consigo escolher bem o que sentir nesse lugar. Mas tento não fazer drama com isso. Tenho a tranquilidade de saber que eu nunca dourei a pílula, sempre falei sobre as coisas com ele abertamente, um papo reto mesmo. Desde que ele tinha três anos e tinha acabado de ser matriculado na escola, e chegou em casa perguntando sobre o cara que ele de repente notou que faltava: "Cadê meu pai?". Respondi na lata e a reação dele foi mais simples do que eu imaginava. Acredito que nós, adultos, costumamos colocar uma dose extra de drama em coisas que as crianças encaram com mais naturalidade. Nunca inventei nada pra tentar suavizar o que de fato aconteceu. E ele cresceu muito tranquilo com isso, porque nenhuma pergunta que ele me faz vira tabu. Acho até que essa frustração com a qual ele foi obrigado a conviver desde cedo acabou dando a ele certa maturidade. 


Espie: Ele leu o blog “Para Francisco”? Conte-nos algo sobre isso já que tudo começou de você relatando quem foi o pai dele pra ele... deve ter sido um exercício louco de observação pra você, né...? Vai render uma continuação do livro... tipo: o que Francisco pensa sobre o livro “Para Francisco”? Seria muito interessante pra todos os seus leitores ter esse ponto de vista dele para seu trabalho e a imagem do pai.... já pensou como continuar isto? 

Cris Guerra: No último dia das mães, escrevi no meu instagram: "Todo mundo me pergunta se o Francisco já leu o livro que escrevi pra ele. A resposta decepciona. Não, ele não leu. Esteve com o livro nas mãos, leu uns trechos e me entregou dizendo algo como “é cedo demais para isso”. Eu sei que existe uma expectativa enorme por parte das pessoas que acompanham a nossa história. Devo dizer que não me frustro por isso. Acho que o mais importante foi ter escrito. Eu precisei escrever para ele, para o mundo e para mim mesma pra conseguir seguir em frente. Precisei viver essa dor para me descobrir escritora. Foi como construir uma estrada. Depois que escrevi, depois que aquelas palavras foram eternizadas num livro e, ao ver a poesia do que senti chegar a tantas pessoas, tomou conta de mim uma serenidade que não tem preço. Eu sei que tudo isso chegou até ele, mesmo que ele nunca leia uma palavra. Porque não ficou represado em mim. Ganhou o mundo, ganhou sentido. Em 2017, quando fomos lançar a edição especial “10 anos depois”, eu pedi que o Francisco lesse alguns trechos. Tive de insistir, eu confesso. Ainda bem que foi em 2017, porque se fosse hoje ele simplesmente não o faria. Ele agora tem 13 anos. É mais tímido, se esconde das câmeras. Eu também tenho mais experiência para compreender que atender às minhas expectativas – e às de tantas outras pessoas – definitivamente não é o que ele veio fazer no mundo. A cada dia ele se torna mais ele. E a ruptura começa agora, na adolescência. Ele tem todo o direito de escolher os seus caminhos e sabe que estarei sempre do seu lado. Desconfio que o Francisco adora ser meu filho, adora saber que fiz tudo isso por ele. Mas isso é uma suposição. E pode ser uma suposição bem vaidosa e equivocada. Mas não adianta perguntar pra ele porque, mesmo que ele responda de maneira sincera, não sei se a resposta traduzirá mesmo a verdade. Não sei nem se ele sabe o que sente a ponto de responder com essa clareza. Ele pode responder o que pensa que sente. Difícil, né? Quanto a uma continuação, não vejo essa possibilidade. Mas se formos considerar que a minha carreira começou nessa perda, eu já estou dando continuidade, com o meu trabalho de conteúdo, ao compartilhamento dessa história. Minha vida acaba se tornando o tecido do meu trabalho, e eu faço uso dela para compartilhar aprendizados e ajudar a vida de outras pessoas com a minha experiência. 

Espie: Ser inspiração pra tantas pessoas deve demandar uma energia, um esgotamento físico... como se abastece pra seguir produzindo conteúdos, que sejam relevantes à todos os tipos de pessoas, idades...? em qual momento você diz: “chega, agora vou descansar”? 

Cris Guerra: Essa pergunta é muito importante. Você viu quanto tempo demorei pra responder a esta entrevista? Parece pouco caso, parece antipatia, que o sucesso me subiu à cabeça. (aliás, o que é sucesso? rs) Nada disso. Eu simplesmente tenho momentos em que estou sobrecarregada e não dou conta de tudo. Ou de nada. E falho mesmo. Não tão muitas coisas complicadas, mas são muitas coisas, entende? E isso me desorganiza, me esgota. Me recolho na minha incompetência para administrar tantas demandas externas. Eu não vinha dizendo "chega, agora vou descansar". Mas senti que eu estava precisando muito fazer isso AGORA. Eu ainda preciso aprender a colocar o descanso na lista de tarefas. Consegui começar a meditar recentemente, fiz um curso no começo da quarentena. Não sei o que teria sido de mim sem isso. Mas ainda preciso ser mais disciplinada e implacável com as minhas obrigações comigo mesma. 

Espie: Como ser proativa nestes dias ou essa não é bem uma cobrança no momento? Tem cobrança por estar o tempo todo produzindo conteúdo? 

Cris Guerra: Eu já passei por todas as fases. No começo eu queria descansar e me voltar pra dentro – os convites para as lives eram muitos, aceitei muitos deles, mas depois comecei até a me irritar. Fiz matrícula em vários cursos gratuitos, comecei a pensar na transposição das minhas palestras para o modo on-line, mas não saí procurando o que fazer. Eu vinha há muito tempo de uma loucura de trabalhos variados, diferentes, simultâneos, e juntando isso com uma rotina de quarentena de uma mãe com um filho adolescente a coisa ficou desumana. Pelo menos pra mim. E sei que sou privilegiada, que outras pessoas sofreram e sofrem muito mais que eu. Mas o sofrimento do outro não faz desaparecer o nosso, né? Somos nós que temos de dar conta da nossa vida. Achei que eu teria tempo para organizar meu próximo livro de crônicas, fazer meu audiobook, estruturar meu podcast, mas isso tudo está em curso ainda. E estou com um outro projeto que dá mais trabalho, mas ainda começando. Some-se a isso o fato de que vou completar 50 anos em agosto, não sou lá muito disciplinada com a ioga e não tenho tomado sol nem feito exercícios. Nem os meus suplementos vitamínicos eu tenho tomado direito, por loucura. A minha vida fica compartimentada em mil partes e fica difícil desfrutar. A meditação está sendo um momento de pausa fundamental. Eu fico em estado meditativo e não quero mais voltar, é uma loucura. Mas eu acho que estamos fazendo um curso intensivo como seres humanos. Essa experiência (pandemia) é forte, intensa, potente e transformadora demais. Isso já me basta. Isso e conseguir deixar meu projeto pronto para agosto. As palestras presenciais eram boas, mas eu confesso que eu estava cansada e estou adorando ficar em casa. E, diferentemente de outras épocas, ando querendo tempo para ler, mais do que para escrever. Duas coisas que a quarentena fez comigo: me fazer aprender a fazer vídeos (antes eu ficava tímida, hoje adoro, porque o diário da quarentena que fiz no primeiro mês era quase uma necessidade minha) e me fazer escrever menos. Essa segunda coisa parece ruim, mas eu achei boa. Eu tinha a escrita como expressão quase compulsiva, tudo eu precisava colocar no papel para materializar e aprender a lidar. A quarentena me ensinou definitivamente o silêncio interno. E me mostrou que finalmente amadureci. 


Espie: Atravessamos um momento louco/ímpar. Quando você se deu conta disto e como vem tratando a pandemia/isolamento em seu dia a dia? Sabíamos que você estava com uma agenda grande de viagens e palestras. Vem adequando isto através das lives ou neste momento preferiu parar e recomeçar de um ponto novo? 

Cris Guerra: Tive metade das minhas palestras de março canceladas, mas, ainda assim, tive um mês de março melhor do que os de outros anos. Acho que meu trabalho de palestras está sendo devidamente valorizado e mais conhecido. Mas é cansativo esse vai-e-volta de avião. Então eu aproveitei pra parar, investir mais no on-line, que era um plano que eu vinha adiando. Mas sem pressa ou desespero. Tudo está acontecendo naturalmente, no seu tempo. E eu estou preparando um projeto que equivale, em algum aspecto, às palestras, mas de forma bem mais acessível, e não dependendo de as empresas me contratarem. Continuarei à disposição e já estou fazendo palestras on-line, mas eu gosto de ter várias atividades justamente para não ficar refém de nenhuma delas. 


Espie: Se tem uma coisa que você ensina pra todos nós é: nunca desistir do amor! Esse amor deve perpassar primeiro pelo amor próprio, claro. Alguma vez já se desapontou por alguma escolha amorosa, se sim como lida com suas frustrações sobre isso? 

Cris Guerra: Nossa, muitas e muitas vezes me decepcionei, sofri, quase me acabei de chorar. Eu insisto porque sou teimosa mesmo. E otimista, rs. Mas eu fiz muito trabalho interno também. Faço psicanálise há muitos anos, sou adepta de outras terapias e visões mais holísticas. Fiz constelação familiar, amo a antroposofia e a leitura corporal. Adoro a minha taróloga e cada vez que faço uma sessão é uma espécie de terapia. E nos últimos anos eu entendi na psicanálise a minha repetição de padrões. Estou com meu namorado há dois anos e meio e é uma relação muito mais serena, diferente de todas as outras que já tive. As minhas frustrações anteriores foram muitas e eu sofri bastante, mas nunca tentei me poupar. Vivi tudo intensamente e não me furtei a olhar para dentro para me compreender melhor. Acho que o amor é uma batalha, depende de sorte também, mas não acontece num passe de mágica como nos ensinaram. Ele precisa de disposição, vontade de estar juntos e muito trabalho interno. Não posso esperar do outro o que eu mesma não consigo me dar. Eu achava isso tudo muito teórico, mas não é. Finalmente compreendi que é verdade e estou feliz comigo mesma e com a relação que tenho construído com o Alê (meu namorado). E entendi uma coisa fundamental: eu antes buscava relações prontas, encontrava "o príncipe" e já casava, achava tudo perfeito. Depois compreendi que das relações que começam perfeitas a gente precisa desconfiar. Eu começava do alto e o namoro ia despencando. Essa minha relação atual eu comecei de baixo, tijolo a tijolo. Foi e tem sido uma construção. E a obra nunca estará pronta, é preciso que se diga. 

Espie: O que você vem consumindo de referência de vida/comportamento nestes tempos de isolamentos? (Tipo: dicas de quem devemos observar, ler, ouvir, consumir...) 

Cris Guerra: Nossa, eu sou uma gulosa. Nem sei te dizer quantas pessoas são interessantes pra mim e com certeza vai ser impossível te indicar todas as que eu gostaria. Vou esquecer de muitas. Sigo e amo o André Carvalhal, como o "futurólogo" que me diz algo relevante. Gosto também de Giovanna Nader, Bruno Torturra, Átila Iamarino, Eduardo Moreira, Djamila Ribeiro, Carla Furtado (Feliciência), Babi Amaral (uma amiga de BH). Sigo muita gente e é impossível dizer todo mundo aqui. Tenho procurado aprender muito sobre a nossa situação política e social, estou aberta a aprender mais sobre o racismo e sobre o antirracismo. Queria mesmo era ser uma esponja, mas não dá pra aprender tudo, tem que selecionar, não cabe tudo ao mesmo tempo. 

Espie: Acredita ainda no Brasil ou está bem complicado ser otimista com tantos desmantelos? Se posicionar politicamente é certo ou errado até que ponto? 

Cris Guerra: Eu sou uma otimista incurável, não vejo como levar a vida sem otimismo. Acordar pensando que vai dar tudo errado deve ser um pé no saco, rs. O pessimista é um folgado, porque ele só precisa esperar dar errado pra ter razão, e eu me recuso a ficar desse lado da força (ou da fraqueza). E ser otimista não significa deixar de ser realista. É tentar ver o lado mais produtivo de uma realidade, e nesse sentido dá muito mais trabalho, mesmo. Pra ser otimista nesse cenário, por exemplo, eu prefiro pensar que ainda estamos muito imaturos como País, que não passamos por grandes perrengues como grandes guerras, e que por isso ainda somos muito mimados. Acho que estamos ainda numa fase muito atrasada, que é a de tomar consciência do tamanho dos nossos problemas. E tudo parecia estar caminhando, até que esse governo fascista chegou ao poder. Por eleição direta, e isso é absurdamente assustador. Mas se houve gente pra votar nele é porque o cenário anterior gerou uma indignação (e uma mágoa mesmo) do brasileiro que precisa também ser analisada. Na verdade, esse governo ter sido eleito é uma prova de que “não”, as coisas não estava caminhando. Eu sou de esquerda e embora, eu já tenha acreditado em narrativas falsas contra o PT – e pra mim ainda existem pontos obscuros, mas eu votaria no PT de novo de olhos fechados, mas prefiro ver outras lideranças de esquerda surgirem. Só que o Brasil não tem a capacidade de eleger alguém da esquerda agora. A saída será por uma via mais suave, infelizmente. Mas qualquer coisa que tire o Bolsonaro e sua corja do poder já será um passo. Eu não acho que estamos num momento em que a questão é ser de direita ou de esquerda. O que estamos vendo no Palácio do Planalto é uma afronta atrás da outra, diariamente. E eu não consigo não me posicionar. Nesse momento tão agudo, uma pessoa como eu não se posicionar é algo para se desconfiar. 
 

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(Fotos: Divulgação)
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